"Em idioma bambara, do Mali, na África subsaariana, a palavra é djeli, que significa “sangue que circula”. Para cada um dos idiomas da África do noroeste, ao sul do Saara, há uma palavra específica para designar os caminhantes cantadores, sobretudo na região outrora conhecida como Império Mandinga, atravessado por um rio em forma de arco, o Níger, que começa nas montanhas de Serra Leoa, em direção ao interior, até alcançar o Saara e fazer uma curva no sentido do oceano, desaguando no golfo da Guiné. Banhados pelo rio-arco, surgem os griôs, que condensam em um homem, ou mulher, a memória viva de todo um povo, na forma de músicos, contadores de histórias, poetas, genealogistas, encantadores. No século XX, estudantes africanos, de diversas nações, decidiram unificar uma palavra para expressar toda a importância e significado dessas pessoas que são verdadeiras bibliotecas vivas, fazendo surgir o termo “griot”, em francês, que também carrega uma história.
Por se tratar de cultura de transmissão pela oralidade, há poucos registros escritos e as versões variam. Diversas fontes sugerem que griot é um afrancesamento, ocorrido no século XX, da palavra portuguesa “criado”, utilizada durante o holocausto da escravização. Todavia, estudos recentes, sobretudo no arquipélago de Cabo Verde, indicam que a origem está no termo “gritadores”, utilizado para designar os mestres das sabedorias ancestrais, que, ao adentrar o ambiente em que os escravizados aguardavam o embarque para os navios negreiros, gritavam para que não esquecessem suas origens. O grito dos gritadores atravessou o Atlântico e está presente no “grito” da capoeira, no “grito” do samba, sempre a indicar o início de uma roda ou atividade artística, como a entrada de uma escola de samba na avenida.
Foi no Forte de Cacheu, na Guiné-Bissau, de onde se estima que 1 milhão de escravizados tenham saído em três séculos, que os escravizadores portugueses tomaram contato com os “gritadores”. Eram homens altos, cheios de colares e tecidos, com cabelos emplumados, segurando seus instrumentos musicais, a kora, o balafom, falando em idiomas estranhos aos europeus. E que gritavam e gritavam. Considerados feiticeiros, eram temidos pelos traficantes negreiros. Assim, os “gritadores” podiam ir ao porto e cantar e contar histórias para o povo acorrentado.
Procurando tornar o tráfico negreiro mais eficaz, os portugueses, que nos séculos XVIII e XIX eram também conhecidos como brasileiros, tinham por prática misturar povos de diversas regiões e idiomas, muitas vezes inimigos entre si, evitando vínculos, solidariedade e entendimento entre os cativos. Também os deixavam acorrentados por semanas, até meses, ao relento, sob a chuva intensa da costa da Guiné, aguardando o momento do embarque. Era nesse ambiente que os “gritadores” adentravam, rememorando histórias da ancestralidade. De Cacheu, os escravizados eram transferidos para as ilhas de Cabo Verde, de onde nasce o tronco linguístico do idioma crioulo, que se espalha por todas as Américas em diversas ramificações, por misturado que é. De lá aguardariam o embarque para as terras desconhecidas, metade deles morreria durante a navegação.
Foi a presença dos “gritadores” que permitiu àqueles povos, despossuídos de todos os bens materiais, portando trapos apenas, refazer suas culturas no além-mar, porque guardada em suas memórias. De “gritadores”, “griot”, em francês. Abrasileirando, “griô”. Esse grito que preserva histórias, modos de ser e fundamentos recriados, é reproduzido e está presente no grito da capoeira, no grito do samba, no grito do soul e do blues, entre outros gritos a ecoarem a liberdade ancestral." (Célio Turino)
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